A mente do ciúme

A mente do ciúme
Zhou Fan

Era janeiro de 2019 e a atriz Clarice Niskier havia acabado de apresentar um trecho da peça A lista, de Jennifer Tremblay. O fato aconteceu durante o Paulistanas — um evento lindo que era organizado anualmente pela Nathália Roberto e pela Clarissa Soneghet, sempre no dia do aniversário da cidade de São Paulo. Ao terminar a apresentação, Clarice Niskier disse o seguinte:

“A função da arte é você não precisar que alguém morra na sua frente para se tocar de algo. A arte é uma grande amizade. O outro passou por uma coisa e está oferecendo sua história de bandeja. A dor do outro é fonte de sua reflexão.”

Que bela definição! Para quantos lugares a arte é capaz de nos levar! Pensando nessas infinitas possibilidades, ali nasceu uma vontade de aproveitar todo o arsenal já produzido por tantos artistas para entendermos mais sobre o que sentimos. Será que a arte pode nos ensinar mais sobre nossas emoções? Exemplificá-las? Nos fazer ver limites e possibilidades?

Foi assim que surgiu nosso podcast, o podcast das emoções. Nele, usamos a arte para abrir uma conversa sobre o que sentimos. Um papo que não tem caráter terapêutico, mas tem intenções educativas.

Dê o play para ouvir essa conversa e a música

Ciúme na música “Domingo no Parque”

A primeira canção que analisamos em nosso podcast é um clássico da música popular brasileira: “Domingo no parque”. Uma música de Gilberto Gil, referência nacional, e que foi quase a vencedora do festival de 1967.

Com um começo musical denso, enérgico, cheio de uma complexa brasilidade rítmica e com um nome tão pacífico, quem já cantou a música sem se dar conta da letra pode até pensar: “O que pode dar errado em um domingo no parque?”. Ora, muita coisa. Especialmente se esse domingo tiver, assim como o de Gil, um episódio de ciúme relatado com requinte de detalhes em primeira pessoa.

Ilustram este texto imagens de excelentes filmes sobre relacionamentos (Blue Valentine)

O rei da brincadeira (ê, José)
O rei da confusão (ê, João)
Um trabalhava na feira (ê, José)
Outro na construção (ê, João)

A canção começa apresentando os dois personagens principais dessa história: José e João. Mas, para essa música contar sobre um episódio emocional de ciúme falta um elemento fundamental. O psicólogo Paul Ekman conta que não considera o ciúme exatamente uma emoção. O ciúme é uma trama emocional com 3 atores: uma pessoa que teme perder a atenção do outro, a pessoa “disputada” e ainda a rival. No meio deste enrosco emocional, muitas outras emoções são convidadas: a pessoa que está com ciúme pode ter medo, por exemplo, a rival pode sentir desprezo e o ser que é disputado claramente viverá muitas emoções nesse processo.

Conquista, descoberta e muitas emoções em Azul é a cor mais quente

Pois a pessoa que falta em nossa trama emocional é Juliana. Os amigos João e José se encontram no parque de uma maneira não-usual. Enquanto João está acompanhado de Juliana numa cena romântica, José chega de surpresa e vê o amigo e a mulher dos seus sonhos dividindo uma rosa, um sorvete e um passeio na roda gigante.

Começa, então, uma narrativa que considero excelente descritora dos meus próprios momentos de ciúme: o relato de Gil é quebrado, confuso, em etapas e tem como base a criatividade da mente do ciumento. Quem nunca viu um pedaço da história e já imaginou muito mais coisas do que as que estão ali explícitas?

Foi no parque que ele avistou Juliana
Foi que ele viu
Foi que ele viu Juliana na roda com João
Uma rosa e um sorvete na mão
Juliana seu sonho, uma ilusão
Juliana e o amigo João
O espinho da rosa feriu Zé
E o sorvete gelou seu coração
Juliana girando (oi, girando)
Oi, na roda gigante (oi, girando)
Oi, na roda gigante (oi, girando)
O amigo João (João)
O sorvete é morango (é vermelho)
Oi girando e a rosa (é vermelha)
Oi, girando, girando (é vermelha)

Uma Thurman impecável em uma trama emocional do ciúme em Ninfomaníaca

O ciúme de José, na descrição da canção, corrói até mesmo nosso peito de espectador. E a rosa e o sorvete que Juliana carrega nas mãos são a materialização da ferida e da gélida decepção de nosso protagonista. Que dor o ciúme é capaz de causar! A mente na hora de uma emoção dolorosa como o ciúme é bem representada pelo girar da roda gigante do casal apaixonado. Na hora do ciúme me sinto mesmo presa em uma narrativa atordoada em looping: girando e girando.

Talvez você já tenha ouvido essa música e nunca tenha reparado que o ciúme precede um final terrível. E se há uma lição oferecida de bandeja na música de Gil, certamente é a de que a emoção pode nos levar para lugares sombrios. Mesmo sendo eu uma boa pessoa, tão bacana quanto José, posso cair em um episódio que me tire do sério, tanto quanto esse o tirou.

Olha o sangue na mão (ê, José)
Juliana no chão (ê, José)
Outro corpo caído (ê, José)
Seu amigo João (ê, José)

“Somos analfabetos emocionais. Aprendemos anatomia e métodos de cultivo na África, sabemos fórmulas matemáticas de cor e salteado, mas não nos ensinaram nada sobre nossas almas.” (Cenas de um casamento)

Se passamos nossas vidas sem cultivar intimidade com o que sentimos, é muito provável que nem ao menos percebamos quando estamos vivendo uma emoção. Na hora de um episódio de ciúme, a emoção me parece tão concreta, estática, viva, eterna, tão minha, que posso me sentir autorizada a agir por meio dela. E pelo bem de todas as nossas relações, certamente não é pelo ciúme que queremos embasar nossas ações no mundo.

Ouça aqui o episódio “Ciúme no parque”, do podcast das emoções

Um trecho de ciúme em Dom Casmurro

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