Com raiva não se faz caramelo

Com raiva não se faz caramelo

Se você já esteve na função culinária de preparar uma calda de açúcar, conhecida como caramelo, sabe bem os erros possíveis que podem acontecer no processo. Calda queimada, panela estragada, casa com fumaça, gosto amargo, caramelo cristalizado… São muitos os deslizes latentes na receita, só esperando nossa atenção se desviar, a colher de pau parar de mexer, a chama do fogão de repente aumentar… É preciso presença e atenção no momento em que nos aventuramos a colocar o açúcar na panela.

Certa vez, ouvi de uma cozinheira que “com raiva não se faz caramelo nem se bate maionese”. Estes são dois preparos da cozinha que demandam uma qualidade que é justamente o maior remédio existente para a raiva… A paciência.

“Paciência é o intervalo entre a semente e a flor.”

Ana Jácomo

A gente bem sabe que no momento em que sentimos raiva a paciência é inexistente. Com raiva eu grito, discuto, faxino a casa e enumero agilmente todos os defeitos da pessoa que protagonizou meu episódio emocional. Uma concentração enérgica toma conta de meu corpo e de minha mente. Com raiva, parece impossível me conter no contínuo e sensato mexer da calda na panela. Me sinto completamente discrepante da suave precisão da junção de ovo e óleo, misturados até que se dê a maionese.

Com raiva não se faz caramelo porque a raiva, além de alterar o corpo, vem também com um véu cobrindo a realidade. Quero aumentar o fogo, questiono a qualidade do açúcar, culpo a panela, derramo calda no fogão. Bato a maionese aleatoriamente, coloco mais limão do que o necessário, mudo de ideia e ela desanda.

La Petite Cuisinière, pintura de 1858, de Pierre Edouard Frère

Se é quando estamos doentes o momento que mais precisamos de cuidados, vejamos que curioso: é justamente no momento da raiva que mais precisamos respirar e cultivar a paciência. Logo, cabe tentar fazer caramelo e maionese quando estivermos zangados: nos atrever em um preparo que demanda paciência é, justamente, um jeito de cuidar do que estamos sentindo. Se quisermos olhar essa raiva diretamente nos olhos, e lidar com ela além da supressão e da expressão, sempre é hora de fazer caramelo!

“O oposto da raiva, em última análise, é o amor e a compaixão, a vontade de ajudar os outros a não sofrer e ser feliz. No entanto, é forçar demais insistir em mudar imediatamente da raiva e do ódio para a compaixão e o amor. Existe um meio termo, o terreno da tolerância, da paciência e do perdão. Ficamos bravos quando somos prejudicados ou pensamos que somos. Nós podemos ainda ficar irritados, mas não nos perderemos para a raiva se pudermos tolerar a irritação, ser pacientes com o dano, evitar reagir e até perdoar quem nos feriu. Portanto, a decisão mais positiva é cultivar a tolerância e a paciência.”

Robert Thurman, no livro Ira

Numa sociedade tão imediatista, paciência não é das qualidades mais admiráveis. Confundimos paciência com passividade e tolice, e essa virtude fica relegada às profissões de cuidado. Queremos pais, professoras e enfermeiros pacientes, mas nem sequer cogitamos a paciência como imprescindível a cargos de liderança — o que é certamente um grande equívoco.

Ponlop Rinpoche conta que ter paciência é permanecer presente e observar as emoções “sem criar uma cena”. Sentir a emoção verdadeiramente, de forma amigável e habilidosa, mas não-reativa. Parece tão simples lendo essas bonitas palavras assim colocadas, mas será que funciona mesmo?

Eu pensei em escrever este texto enquanto, permeada por uma irritação, fazia panquecas com desatenção, nervosismo e vontade de me livrar logo da tarefa. Na hora lembrei de Matthieu Ricard, monge e Ph.D. em genética molecular. Matthieu é muito estudado por cientistas, especialmente por sua capacidade de ativar áreas específicas do cérebro durante algumas práticas de meditação, função que nós, pessoas comuns, não ativamos e que estão relacionadas a um maior nível de bem-estar.

Matthieu é um ser extraordinário, não temos dúvidas, mas será que ele já não nasceu assim, preparado para transformar com maestria açúcar em calda de caramelo? — pensava eu, enquanto sujava o fogão de massa de panqueca. Não temos pesquisas que meçam o antes do cérebro de Matthieu, mas temos um jeito ainda mais valioso de medir sua evolução depois de anos de prática: seus amigos da adolescência, que afirmam que Matthieu não nasceu pronto, não: ele era rabugento.

Fica a dica para os cientistas das emoções: medir o antes do próximo grande meditante com a pessoa talhando o chantilly ou empelotando o molho branco.

Temos jeito, bora cozinhar a raiva na paciência!

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