Ainda tenho amigos!

Ainda tenho amigos!

Existe uma cidade no interior de São Paulo chamada São Luíz do Paraitinga. Esse lugar sofreu uma enchente em 2010, uma grande tragédia que deixou tudo debaixo d’água. Milagrosamente ninguém morreu. Um grupo de cinquenta profissionais do rafting, com quinze botes e um imenso sentimento de solidariedade, conseguiu salvar mais de oitocentas pessoas. 

Em novembro do ano passado, conheci Alice, dona de um dos melhores restaurantes da cidade, que contou uma história muito bonita. Ela perdeu tudo nessa enchente, teve que alugar uma casa nova e o proprietário perguntou:


– Mas, Alice, você não perdeu tudo?

– Sim, tudo!

– Então como vai pagar o aluguel?

– Perdi meu restaurante e minha casa, mas ainda tenho amigos!

São Luíz do Paraitinga coberta de água

De sua casa nova, Alice começou a fazer marmitas para vender e, aos poucos, com paciência, viu a vida se organizar novamente.

Estamos vivendo uma situação extremamente difícil no Brasil e no mundo: uma pandemia causada pelo coronavírus. Na quarta feira, dia 11 de março, a notícia se espalhou por aqui. De lá pra cá, a situação mudou numa velocidade absurda: amigos já perderam seus empregos, mortes foram confirmadas, restaurantes, lojas e shoppings fecharam as portas… Estamos com medo!

Não tenho o que falar para minimizar a dor que sentimos agora. Poderia dizer que vai passar, e vai. Mas neste momento está doído demais olhar para a incerteza de um amanhã pós COVID-19.

Junto com essa enxurrada de más notícias, uma coisa tem chamado nossa atenção: a bondade. Estamos isolados, mas infinitamente mais próximos. Não demorou muito para entendermos que só há uma forma de atravessarmos essa pandemia: juntos. Assim como fizeram Alice e seus amigos!

Estamos todos emocionados, assustados, meio sem saber o que fazer e, ainda assim, oferecemos nosso melhor para as pessoas ao redor. Não há um dia que não chegue em nossos celulares um: “e aí, como você está hoje?” – Familiares, amigos próximos, amigos distantes, ex namorados, colegas de trabalho, conhecidos da internet que nunca vimos pessoalmente e muitos desconhecidos que agora se tornam próximos.

Ontem o telefone tocou na casa de meus pais. Era Cássio, filho de uma paciente do meu pai, que estava preocupado se os remédios da mãe iriam acabar em meio a essa confusão. Expliquei que meu pai está em uma outra casa, mais isolada, para tentar se proteger do vírus. Então começamos a conversar.

Ele me perguntou se também estava confinada, disse que sentia tristeza, ansiedade e que não era bom ficar sozinho em casa. Conversamos durante uns 10 minutos. Falamos sobre trabalho, filhos, São Paulo, notícias… E nos despedimos com a pergunta: “Nathália, posso te ligar de vez em quando durante a quarentena para conversar?”

Ao mesmo tempo que esse vírus ganha escala na nossa individualidade, corta o autocentramento como uma faca afiada. Como ficar presos em nossos problemas cotidianos, no “resolver” da nossa própria vida, quando nos deparamos com tamanha solidão de um desconhecido? Com os amigos que perderam emprego, os profissionais de saúde que atendem em condições precárias, pessoas que não podem parar de trabalhar e estão totalmente expostas, diaristas com medo de passar fome, presidiários completamente vulneráveis, crianças que perderam suas merendas da escola e, o pior cenário, aqueles que estão morrendo e seus entes queridos. 

Suportar esse isolamento e a incerteza de uma vida que ainda não conhecemos pode ser muito assustador. Nosso coração se escancara com tanta tristeza e, incrivelmente, isso desperta o melhor de nós: essa conexão incomensurável com todos os seres. Em um encontro virtual, Tim Olmsted, grande praticante de meditação, disse algo assim: “quanto mais nos familiarizamos com o que acontece com a gente, maior será nossa habilidade de lidar com a dor do outro”. Esse outro precisa de nós. E é urgente. 

No momento que reconhecemos nosso medo, não iremos negligenciar a ansiedade de alguém. Parece que o mundo deu uma bela parada agora e, em diferentes níveis, isso afeta todos nós. Podemos nos desesperar (e acho isso bastante aceitável no momento), mas podemos também tentar arrancar algum recurso interno. Com que mente vamos atender à chamada de um amigo ou desconhecido?

Vou te contar aqui três instruções que ouvi recentemente de alguns professores:

1) Elizabeth Mattis Namgyel disse: “certifique-se de que está respirando”. Algumas vezes, ao longo do dia, durante poucos minutos, podemos prestar atenção na nossa respiração. Isso pode ajudar a nos acalmar antes de passar uma informação adiante, por exemplo.

2) Jetsunma Tenzin Palmo escreveu um e-mail lindo e, ao final, disse: “neste momento de pandemia, é importante manter um senso de perspectiva e agir de forma sensata. Em particular, certifique-se de estocar mercadorias essenciais: equanimidade, empatia e bom senso de humor.” Oferecer humor para quem está muito abalado pode ajudar, ao menos durante alguns momentos, a mudar a paisagem mental. 

3) Esta dica é do Tim Olmsted: “lembre-se que todo mundo, assim como você, está tentando ser feliz”.  A ideia de que estamos no mesmo barco nunca ficou tão clara. Não somos separados daquela pessoa que não tem dinheiro para pagar o aluguel no próximo mês. Daqueles que estão morrendo por causa do COVID 19. Do dono do café perto de casa que fechou as portas. Dos profissionais da área de saúde. Não somos separados da Alice, do Cássio, da Ana, do João, da Olívia, da Bianca, da Marcela, do Luís, do Otávio, da Laura, da Márcia, da Luana, do Pedro, da Taís… 

Jenny Morgan

Esse deveria ser um texto sobre felicidade, e é. Em tempos de coronavírus e na vida “normal”, amar o outro (desejar que ele seja feliz) talvez seja uma das maiores fontes de bem-estar. Como disse a médica Ana Claudia Quintana Arantes: “não dá pra ser feliz se o outro não for.”

“Embora pareçam bastante diferentes tristeza e abertura estão intimamente relacionadas. A tristeza profunda que nos domina quando entendemos a natureza impermanente de todos os fenômenos nos torna receptivos ao mundo à nossa volta. Abrimos nosso coração e começamos a perceber todos os seres, nossos semelhantes. Vemos como todos nós temos que enfrentar as dificuldades da vida; compreendemos a natureza efêmera da nossa alegria; e percebemos quanta preocupação, dor e sofrimento experimentamos durante a vida. Desse modo, entendemos que compartilhamos experiências dolorosas parecidas. Sabendo o que os outros sentem e têm de passar, não podemos deixar de nos solidarizar com eles, e o desejo de ajudar e proteger nossos semelhantes brota naturalmente dentro de nós. Esse desejo de ajudar e proteger se origina do amor, e quanto mais abrimos nossos olhos para os sofrimentos e as delusões dos outros, mais forte nosso amor se torna.”

[Chokyi Nyima] 

Desejo, de coração, que não nos sintamos sozinhos neste confinamento. Que nossas redes de apoio possam se expandir de forma exponencial. Que olhemos menos para nós e mais para os outros. Que a gente se toque que esse sistema do capitalismo está, no mínimo, muito desequilibrado. Que a preciosidade de cada vida humana nunca deixe de ser prioridade. Que não nos esqueçamos: na hora da morte, nossas relações valerão bem mais que o dinheiro que tentamos ganhar, as viagens que fazemos, a empresa que construímos…

E, especialmente, quando tudo isso passar, que possamos nos lembrar que um dia aconteceu! Quem sabe assim nossas vidas nunca mais voltarão ao “normal”.


Texto originalmente publicado na revista Veja São Paulo, na edição de 27 de março de 2020.


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