No começo de setembro de 2020, Isabella conversou com nossa querida amiga Ana Claudia Quintana Arantes, médica, especialista em Cuidados Paliativos, fundadora da Casa do Cuidar e autora dos livros “A morte é um dia que vale a pena viver” e “Histórias lindas de morrer”.
Essa breve descrição já seria suficiente para pararmos com atenção e ouvir o que tem a dizer, mas a atuação dela vai além: Ana caminha por trajetos não convencionais para chegar até as pessoas, não teme o sofrimento, lida com perdas, luto, tristeza e todas as dores e descobertas que surgem em um processo como esse. Como ela mesma diz: “eu trabalho com pessoas que morrem”.
No dia 4 de outubro, fizemos um post no instagram com algumas artes bonitas da Laura Athayde. Surgiram muitos comentários de pessoas que perderam seus entes queridos durante a pandemia. Pensamos então que poderia ser útil transcrever uma parte da resposta da Dra. Ana Claudia para esta pergunta: “A nossa sociedade, hoje em dia, tem espaço para a tristeza?”
Existe espaço para a tristeza?,
por Ana Claudia Quintana Arantes
“Na verdade, não tem muita preocupação com essa emoção, se tem espaço ou não, ela vai aparecer. Então… ‘ah, a sociedade não tem espaço’… Problema da sociedade! A tristeza vem pra vida da gente, Isabella, ela não pede licença.
Então assim… ‘ah, deixa eu te explicar que é importante você viver a tristeza, senta aqui comigo’... A tristeza é muito corajosa, ela não tem medo de não ser aceita. Eu penso que uma das grandes lições que a gente vai aprender com a tristeza é que não existe medo de ser aceita pela nossa realidade.
A tristeza existe! E ela vai estar na vida de todos nós. Em muitos momentos da nossa vida (…). Não tem como evitar, você está viva! Então, se você está viva e você tem algum espaço de amor dentro da sua existência, vai ter espaço de tristeza.
A gente se vincula a pessoas, a realidades, a sonhos… A gente veio já de fábrica com um aplicativo que sabe fazer vínculos (…). Você só pode se desapegar de uma coisa para a qual você se entregou. Senão você abandona, você não pratica desapego, você abandona. O abandono é um ato de covardia. Então se você está triste, significa que é corajosa. Porque você teve coragem de se vincular, você teve coragem de se entregar para alguma coisa muito importante. E essa coisa muito importante desapareceu do seu olhar, ou da sua realidade (…). Se você está triste, é porque você corajosa. Então essa já é uma boa notícia que vem na tristeza.
A tristeza é um sentimento muito necessário para nossa existência. ‘Ah, eu vou escolher não ser triste’. Então você vai abrir mão talvez da parte mais corajosa da sua humanidade. Ela é parte da nossa essência como seres humanos. Ela faz parte da nossa vida no dia a dia. Então a tristeza tem um papel muito necessário na estruturação, na reconstrução desse nosso mundo interno. A gente fica triste quando nosso mundo mundo interno é destruído. E é destruído por quê? Porque nós criamos (dentro da nossa percepção do que é integridade, o que é segurança), nós criamos parâmetros muito claros que trazem esse equilíbrio no mundo. A gente usa um termo na psicologia que é o ‘mundo presumido’. Quando você perde algo que é importante para você, existe um desmoronamento desse mundo presumido. Esse desmoronamento é preenchido a seguir por uma tristeza. Pode ter no início uma revolta, uma raiva muito grande por que aquilo aconteceu… e depois dessa raiva vem a tristeza.
A tristeza vai te fazer companhia até que você reencontre a sua essência. Então a estrutura que nós temos de quebrar vínculos é uma estrutura que está relacionada a questões muito concretas, objetivas: que para você amar uma pessoa ela tem que existir fisicamente. Se ela não existir fisicamente, esse amor parece que perde o sentido. Mas de verdade a tristeza nos leva para a essência desse afeto, a essência desse amor. Então só vai sentir tristeza quem amou. Pode ter sido uma grande ilusão, né? Você amou a pessoa errada, você amou o projeto errado, o trabalho errado, a realidade errada… Mas você amou!
Se você experimenta o amor, você vai experimentar tristeza. A tristeza, quando é pura, é muito poderosa para nos mostrar que a gente tem coragem. Você precisa de coragem para amar uma pessoa. Quando você ama, corre o risco de perder. Tinha comentado há pouco da história do desapego no budismo, que a gente tem que desapegar porque as coisas são impermanentes… Mas se você praticar o desapego só na percepção do medo de se apegar, você não ama, você fica no raso da história. Você só pode desapegar daquilo para o qual (para quem) você se entregou. Quando você tem uma entrega completa no processo, o encontro se basta para que você viva a eternidade sem a presença física daquela pessoa.
Quando a gente fala de tristeza, a gente está falando de coragem. Se você sente tristeza, você teve coragem de se entregar para uma experiência de amor. Essa experiência de amor é algo que vai nos remeter à nossa essência humana. A tristeza é absolutamente necessária para quem quer vivenciar essa experiência nessa dimensão na integridade, na plenitude. Se você nunca ficou triste, sinto muito, você não viveu! Só pode dizer que viveu quem amou e ficou triste. São duas experiências que não são extremos, elas são complementares, são parceiras. Então a tristeza é parceira da alegria.
Tem um texto magnífico do Gibran que é um livro curtinho, chama O profeta. Chega uma mulher e pergunta: ‘fale-nos sobre a tristeza’. E ele diz que a tristeza é a principal fonte do espaço da alegria, porque quanto maior o espaço que a tristeza cavar dentro de você, maior o espaço que a alegria pode ocupar. É muito legal isso!
Não diga não para a tristeza! Senta com ela e ela vai te contar todos os segredos do amor. Ela vai te explicar por que ela está ali. A tristeza é uma ótima parceira para te explicar o sentido da sua própria vida. Ela senta com você e fala assim: deixa eu te contar por que estou aqui! Ela vai te contar em detalhes minuciosos o quão incrível foi aquilo que você viveu com quem você perdeu… Pode ser pessoa, sonho, amor… Pode ser qualquer coisa. Mas essa ‘qualquer coisa’ era muito importante. E aí a tristeza te mostra a importância dessa pessoa (ou dessa situação). Você consegue se aproximar dos detalhes desse sentimento de amor.
A tristeza te ajuda a enxergar melhor quem você amava. E aí ela te faz companhia até que você chega na sua essência. Quando você chega na sua essência, na essência da relação, na essência da sua fonte, de onde surgiu aquele amor… Quando você encontra a essência, que ela te pertence, você descobre que não perdeu nada. Aí eu imagino a tristeza dando um baita sorriso e falando assim: ‘até breve’… Porque a tristeza nunca vai embora para sempre, ela dá uma passeada nas redondezas e fala: ‘até breve, a gente vai se encontrar de novo porque você é uma pessoa corajosa, você sabe se entregar para o amor. Se você sabe se entregar para o amor, você corre o risco de perder’.“
o curso das emoções
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