Pare de lutar contra suas emoções

Pare de lutar contra suas emoções
Arte de Julia Malkova

Dia desses, na abertura de um curso online que ofereço sobre as emoções, foi impossível não tocar no assunto do momento: a pandemia de Covid-19. Perguntei como isso está afetando emocionalmente a cada um dos participantes. Pipocaram relatos de pessoas dos mais diversos cantos do Brasil e do mundo contando como estão vivendo. Muitas carinhas emocionadas se abriram neste espaço virtual de confiança, através do vídeo, e contaram sobre seus mais diversos sofrimentos. Algumas pessoas relataram que já estão sem emprego, outras contaram que são parte do tal grupo de risco, muitas são as únicas responsáveis pelos pais idosos e havia ainda alguns profissionais da saúde por lá, bastante apreensivos.

No meio deste banquete de sofrimentos, surgiu a pergunta de Patricia, médica pneumologista:

“É impressão minha ou ouvir o sofrimento do outro me tira do meu? Estou me sentindo forte agora, é normal isso?”.

É normal, sim, e é por isso o título pretensioso desse texto pedindo para que a gente pare de lutar contra o que sentimos. Mas como fazer isso?

Quando nos abrimos para a dor do outro um processo mágico acontece. Primeiro, saímos de nosso próprio sofrimento tão ensimesmado: minha vida, meu propósito, minha carreira… Sabe quando estamos completamente imersos em nossas pequenices e nos irritamos com tão pouco? A fala atravessada de alguém, o dia nublado, o saldo negativo… Tudo isso ganha outra dimensão perto de sofrimentos tão diversos: não é menor nem menos importante, mas me vejo no outro e espelho o outro em mim. É aberta uma conexão muito simples e profunda: a humanidade comum que há entre nós.

Depois, ganhamos a possibilidade de usar esse sofrimento imenso como combustível para uma ação bondosa no mundo. É como se finalmente estivéssemos enxergando a realidade. Afinal, se está tudo tranquilo em meu isolamento social em home office e eu não estou experienciando emoções dolorosas, talvez seja por não estar contemplando o tanto de sofrimento que está presente no mundo agora. Ao abrir os olhos, posso finalmente agir não pela aflição de estar sentindo medo, ansiedade ou frustração: posso agir pela conexão que se abriu e por desejar o fim do sofrimento do outro exatamente como desejo o fim da minha dor.

Por que será, então, que é tão difícil abrir o jornal e ver as imagens do sofrimento na Itália, ouvir sobre os medos da amiga ou até mesmo estar presente para o outro num momento de tristeza? Talvez porque aprendemos a lidar com nossas emoções de duas maneiras extremadas e desajeitadas.

Geralmente, ao encontrar uma emoção, suprimimos o que sentimos ou nos expressamos desenfreadamente. O cineasta Ingmar Bergman colocou essa fala na boca de um personagem em Cenas de um casamento:

“Somos analfabetos emocionais. Aprendemos anatomia e métodos de cultivo na África, sabemos fórmulas matemáticas de cor e salteado, mas não nos ensinaram nada sobre nossas almas.”

Basta refletirmos um pouco sobre nosso último surto emocional e teremos um panorama de como estamos lidando com nossas emoções: oscilando entre a supressão e a expressão. Se alguém fura a fila bem na minha frente no caixa do mercado, imediatamente me sinto presa entre duas possibilidades: devo gritar, ofender e fazer valer meus direitos daqui dessa raiva que se instalou em mim? Ou então deixo de lado, finjo que não vi e volto para casa remoendo a história?

Nossa cultura vê esses dois extremos de maneiras bem românticas. Quando conhecemos alguém que suprime uma emoção muito bem, que engole sapo, acreditamos que a ausência de uma emoção visível é sinônimo de equilíbrio emocional. Parece até que essa pessoa, aparentemente tão calma, não está sofrendo. No entanto, as mais recentes pesquisas científicas apontam que a supressão de uma emoção é muito maléfica e causa um alto pico de estresse no corpo.

James Gross, um grande especialista em regulação emocional, em uma emblemática pesquisa, apresentou filmes com cenas fortes (de amputação e de tratamento de queimaduras) a três grupos. O primeiro grupo foi orientado a apenas assistir ao filme. Ao segundo, avisaram: “Preparem-se, serão cenas fortes”. Já o terceiro grupo foi informado de que eles estavam sendo filmados e não poderiam esboçar reação alguma enquanto assistissem ao filme. O resultado é gritante: é do terceiro grupo, claro, o maior pico de estresse. A emoção segue borbulhando dentro de nós, apesar de nossas caras de paisagem.

Se a supressão é maléfica e tem cara de equilíbrio emocional, também romantizamos a expressão desenfreada do que sentimos. Por vezes acreditamos que quem fala tudo o que pensa age de acordo com o coração. Ao não levar desaforo para casa associamos esse comportamento impulsionado pela emoção como autêntico. Mais uma vez nos enganamos acreditando que gritar na fila do mercado desopila o fígado. Não sei vocês, mas nunca cheguei em casa mais aliviada porque briguei no mercado (só consegui colecionar inimigos na vizinhança). A professora Jetsunma Tenzin Palmo diz que, ao nos deixar levar pelo que sentimos, mostramos nossas tendências infantis que estavam escondidas: “A tragédia é que crescemos externamente e por dentro permanecemos emocionalmente com quatro anos de idade.”

Arte de Julia Malkova

É por conta destes extremos que surgem programas de inteligência emocional que prometem controlar as emoções, superar o medo ou se livrar da ansiedade — como se as emoções fossem controláveis, estáticas e supérfluas para nossa existência! As emoções são vibrantes, fluidas e absolutamente necessárias para uma vida saudável. Não há fórmula mágica para lidar com o que sentimos. É aqui também que surgem os conselhos genéricos de que devemos agir pelo coração. Se esse agir pelo coração é agir pelo que surge no instante em que sentimos, é melhor não. O psicólogo Paul Ekman diz que isso é, na verdade, agir durante o período refratário, os minutos em que estamos completamente tomados pelo véu com que a emoção nos cobre.

Existe uma metáfora maravilhosa para explicar os extremos emocionais, que ouvi do professor Mingyur Rinpoche. Na expressão emocional, agimos como se as emoções fossem nossas chefes. Obedecemos prontamente, somos comandados pelo que a voz da raiva, do medo e da tristeza dizem. Na supressão, agimos como se as emoções fossem nossas inimigas. Rejeitamos o que surge, escondemos a emoção de nós mesmos e lutamos contra ela. Entre reconhecermos as emoções como chefes ou inimigas, há um espaço de lucidez: o entendimento de que elas são nossas amigas. Não precisam pautar nossos comportamentos, mas não devem ser escondidas embaixo do tapete.

As emoções colorem nossas experiências. Dizem coisas sobre o que é importante para nosso bem-estar. Senti-las é o resultado de estarmos completamente vivos. E algumas doem, sim, a gente sabe disso. Mas não precisamos adicionar aversão à sensação de estarmos com o coração aberto.

Nosso coração é paradoxal: quanto mais tentamos nos proteger das emoções perturbadoras, mais elas nos alfinetam, nos assombram e nos perseguem como um grande monstro. É preciso fazer o caminho inverso, como Max no livro infantil Onde vivem os monstros: olhar nos olhos de cada um desses seres assustadores. Não à toa as escolas estão começando a trabalhar a educação socioemocional de seus alunos, ensinando a nomear o que sentimos. Só podemos ter escolhas perante o que sabemos.

É nessa familiarização com nosso mundo interno que, além de olhar para nossas dores, vamos poder ser úteis aos que nos cercam. Vamos aceitar sentir tudo: da alegria à inveja. E ao encontrar nossa própria vulnerabilidade, vamos dar de cara com nossa maior força. Aí, sim, podemos considerar agir pelo coração! Se agir pelo coração for não uma pronta resposta à emoção, mas uma ação no mundo baseada em qualidades maravilhosas, como amor, compaixão, equanimidade e alegria empática.

Por isso, Patricia, é um alívio parar de lutar contra o que sentimos, dividir nosso sofrimento e aceitar suas ressonâncias em nós. É deste espaço que nascem os movimentos capazes de salvar o mundo.


Este texto foi publicado originalmente na revista VejaSp do dia 15 de abril de 2020, na coluna A Tal Felicidade.

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